Paradoxos da globalização
Não se pode negar o risco de avanço do protecionismo mundo afora. Por outro lado, o empresariado indica expectativa de baixo impacto dos movimentos internacionais na economia e nos negócios locais em 2017 – sinal de que o foco interno continuará maior.
Outubro-Dezembro | 2016A maior parte dos especialistas indica que, em 2017, o Brasil deve lidar com o risco de novas medidas e ideias protecionistas se intensificando mundo afora, em contraponto a uma economia que vinha se integrando fortemente. A tentação de proteger as economias da concorrência internacional está de volta. Em vários países, o protecionismo e o nacionalismo econômico estão em ascensão, junto com o crescimento de forças políticas que rejeitam a globalização e pregam o combate à imigração, o incentivo à fabricação local e a rejeição dos acordos comerciais internacionais.
O voto pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia e a eleição do candidato republicano Donald Trump à Casa Branca são demonstrações desse movimento, em meio a sinais de retração do comércio mundial e de desaceleração econômica chinesa. “Um movimento americano de saída dos acordos globais e de rejeição à imigração seria desastroso”, afirma o economista Edmar Bacha, diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica (IEPE), no Rio de Janeiro. “Os Estados Unidos lideraram o movimento de abertura dos mercados que fez o mundo prosperar desde 1945. Foram eles que deram forma ao Banco Mundial, ao FMI [Fundo Monetário Internacional] e ao GATT [Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio], que financiaram o Plano Marshall e garantiram mercados para as economias emergentes, como a China. Voltar atrás ou recuar um pouco seria um desastre.”
De fato, há riscos, mas também há perspectivas de normalização. O novo plano econômico chinês destinado a promover o consumo das famílias deverá aumentar as importações de produtos agrícolas de 14% para 41%, até 2030, segundo o Banco Mundial. A exportação de serviços dos Estados Unidos e do Japão para a China deverá crescer 10% ao ano nesse mesmo período.
Visão do empresariado
O que mais chama a atenção, porém, é a percepção manifestada pelos decisores do meio empresarial brasileiro, que foram consultados pela Deloitte a respeito do potencial dos impactos externos sobre a nossa economia e os negócios locais por duas vezes: na aplicação da pesquisa “Agenda 2017”, em setembro e outubro (antes da eleição de Trump, portanto), e em uma enquete realizada menos de dois dias após a confirmação do novo presidente dos Estados Unidos.
No primeiro levantamento, fatores como a taxa de juros dos Estados Unidos, a desaceleração chinesa, o Brexit e outros foram indicados como de baixo ou muito baixo impacto. No segundo, mesmo sob o efeito próximo do resultado da eleição, os respondentes indicaram, em sua grande maioria, a perspectiva de um efeito neutro ou levemente negativo do resultado do pleito sobre a economia global em 2017. Sobre os impactos dos movimentos externos sobre o Brasil, as respostas mostram um cenário menos pessimista ainda para o curto prazo (veja abaixo).
A seguir, estão apresentadas algumas análises de especialistas e agentes de mercado, além dos resultados dos dois levantamentos da Deloitte.
Ideia versus realidade: o protecionismo vem avançando, mas a acomodação dessa tendência já está na pauta
“A visão de que a globalização é uma fonte de riscos e incertezas está amadurecendo há anos”, diz Pedro da Motta Veiga, diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes). “No século 21, não houve avanço significativo nas negociações comerciais globais. A Constituição Europeia foi rejeitada pela França e pelos Países Baixos. O Partido Republicano norte-americano vem se deslocando do liberalismo para o protecionismo há décadas”.
Fenômenos diversos, como os impactos da crise financeira de 2008, a onda de refugiados na Europa e os atentados terroristas, são percebidos como expressões da globalização, mas a dinâmica econômica mundial ainda não foi afetada por eles. Para o diretor do Cindes, “em termos microeconômicos, a globalização continuou de vento em popa com a entrada da China e com a explosão do comércio eletrônico. Pouca coisa mudou nas políticas nacionais no sentido de uma ruptura com o mercado global. Esse é um cenário preocupante mais pelo que projeta do que pelo que já aconteceu”.
As tendências, entretanto, estão mudando. Entre 2011 e 2016, o número de medidas protecionistas dos países do G20 aumentou quatro vezes, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC). Em 2016, o comércio mundial deverá crescer apenas 1,7%, em contraste com a média de 6% antes da crise financeira global de 2008. O fluxo de capital para os países emergentes sofreu uma redução de 4,9% do Produto Interno Bruto (PIB) global entre 2010 e 2015, segundo o FMI – uma perda de US$ 1,123 trilhão. Os preços de frete internacional estão em queda desde 2009.
É possível, porém, que a maré antiliberal busque acomodação. A primeira-ministra britânica Theresa May confirmou que o Brexit vai acontecer até março de 2017, mas o secretário de Comércio, Liam Fox, anunciou que a Grã-Bretanha quer manter o perfil “liberal”. O novo governo pretende restringir o livre fluxo de pessoas, mas também quer um acordo com o Espaço Econômico Europeu (EEE). Londres talvez tenha de renegociar acordos individuais de comércio com 58 nações.
Atualmente, o Reino Unido é o quarto maior investidor estrangeiro no Brasil. Os brasileiros importam veículos, bens manufaturados, pesticidas e produtos químicos e exportam ouro, minério de ferro, soja, aviões, carne e café aos britânicos. A British Gas, a British Petroleum, a Rolls-Royce e a Shell têm fortes investimentos no Brasil. O presidente da Câmara Britânica de Comércio e Indústria no Brasil, Jorge Santos Carneiro, acredita que o Brexit pode melhorar o comércio bilateral. “Na verdade, os brasileiros ganharam uma ótima oportunidade para atualizar os termos do seu relacionamento com a Grã‑Bretanha”, diz Carneiro.
China: menor crescimento, mas ainda relevante
Também há turbulência na China. Nas últimas três décadas, a economia chinesa cresceu espantosamente – em média, 10% ao ano, triplicando de tamanho, de 5,5% de participação no PIB global em 1995, para 16,8% em 2015. O ano em que os chineses ingressaram na OMC, 2011, marcou o apogeu da expansão do comércio global desde 1945, a um ritmo duas vezes acima do crescimento do PIB. Em 2012, a expansão desacelerou, caindo para 7% em 2015, devendo recuar para 5% em 2020. Em 2015, uma bolha no recém-criado mercado de capitais do país provocou uma queda de 32% nas ações em 17 dias – US$ 3,5 bilhões de perda.
Para equilibrar a economia, estimular o consumo das famílias e construir uma rede mínima de seguridade social, o primeiro-ministro Xi Jinping lançou o 13º Plano Quinquenal, que deverá aumentar a importação de serviços e alimentos – beneficiando diretamente o Brasil. “O crescimento chinês certamente será desacelerado”, afirma Ira Kalish, economista-chefe global da Deloitte. “Porém, a expansão continuará num ritmo favorável para a maioria dos países”.
Há importantes grupos chineses que já investiram no Brasil e que continuarão a investir, principalmente nos setores de Infraestrutura, agronegócio e construção civil., Paulo de Tarso, sócio que lidera o Chinese Services Group da Deloitte no Brasil.
A China pretende investir em projetos de infraestrutura e em cadeias de negócio no exterior e já aumentou os investimentos no Brasil, “Fiz parte do grupo de empresários e executivos que acompanhou o presidente Michel Temer à China em setembro”, conta Paulo de Tarso, sócio da Deloitte que lidera o Chinese Services Group da organização no Brasil e também a abordagem de mercado para o interior paulista. “Há importantes e grandes grupos empresariais chineses que já investiram no Brasil e que continuarão a investir, principalmente nos setores de infraestrutura, agronegócio e construção civil. Há muito o que se esperar quanto aos investimentos chineses no Brasil”, afirma.
Estados Unidos: entre mudanças e permanências
Não há dúvida de que o comportamento dos Estados Unidos no comércio exterior pode sempre desregular a economia mundial. Em 2015, US$ 50,5 bilhões foram movimentados pelo comércio bilateral Brasil-Estados Unidos. “O Brasil pode se beneficiar aumentando a fatia do comércio internacional em seu PIB por meio de manufaturas”, diz Ira Kalish, economista-chefe global da Deloitte.
Nos Estados Unidos, durante sua campanha presidencial, Donald Trump propôs restrições à imigração, incentivos à fabricação local e rejeição de acordos como Nafta, Parceria Transpacífica (TPP) e Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), que já enfrentam resistências no Congresso. Defendeu 35% de taxação sobre os produtos mexicanos e chineses. Além de abrir um conflito entre as duas maiores economias do mundo, suas propostas, para muitos, poderiam gerar recessão.
“A grande depressão dos anos 30 foi exacerbada pela imposição de tarifas severas pelos Estados Unidos”, ressalta Kalish. “Estou preocupado com a falta de apoio político ao livre comércio porque sua expansão é crucial para impulsionar o crescimento. O protecionismo pode prejudicar muito os mais pobres. Seus defensores dizem representar os interesses dos trabalhadores comuns, mas são esses os que sofrerão mais.”
Ninguém ignora que a globalização gera ganhadores e perdedores. Milhões de camponeses na China e da Índia saíram da miséria migrando para trabalhar nas metrópoles e uma elite corporativo-financeira acumulou grande riqueza espalhando negócios pelo planeta. O economista e ex-ministro Delfim Netto observa que “surgiu uma classe média global asiática, com renda per capita inferior à renda europeia, e uma plutocracia global escandalosa de super ricos. Os perdedores são as classes médias e os trabalhadores industriais desprovidos de renda, emprego e influência com a migração das fábricas. Mas agora eles estão dizendo ‘chega’”.
“Há desemprego, mas também há setores eficientes ganhando mercado”, observa o economista Roberto Giannetti da Fonseca, ex-diretor de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). “Ocorre que os ganhadores ficam em silêncio e os perdedores gritam. Mas, se o protecionismo fechar mercados, todos os consumidores serão prejudicados porque perderão acesso a produtos de melhor qualidade e melhor preço”.
O Brexit é uma reação contra a burocracia da União Europeia em Bruxelas, assim como o protecionismo reage contra a complexa arquitetura regulatória do comércio global. “Não se definem apenas tarifas de produtos”, diz Giannetti. “As negociações envolvem propriedade intelectual, normas trabalhistas, acordos sanitários, legislação ambiental e compras governamentais. Um acordo global implica uma relativa perda de soberania em prol da integração global, contra a qual políticos reagem.”
Mais valor para a exportação
Diante da desglobalização, o Brasil desfruta do conforto dúbio de ser uma das economias mais fechadas do planeta. Apesar da evidência dos benefícios da concorrência e do livre comércio mundial, o País, que está hoje entre a 8ª e a 9ª maior economia do mundo, é a 25ª maior exportadora. “O PIB do Brasil representa 3% do PIB mundial, mas apenas 1,1% das exportações mundiais. Somos um gigantinho em termos de PIB e um anão em termos de exportação”, diz Edmar Bacha, do IEPE.
A Ásia consome 45% das exportações do agronegócio brasileiro e a China, um quarto desse montante. Para crescer, o Brasil precisa se convencer de que “não basta produzir bem; é preciso vender melhor”, diz Roberto Giannetti, ex-FIESP. O País possui terra, clima, água, sol, tecnologia e engenharia genética para “aumentar a produção agrícola em 40%, facilmente, sem desmatar”.
O desafio maior é processar os produtos, criar marcas qualificadas e controlar a distribuição. Em vez de vender suco de laranja bruto, vender suco embalado. Vender carne com cortes especiais, selo de origem e certificação. Em vez de soja bruta, óleo e farelo de soja. Em vez de couro cru, couro processado. “O produto qualificado rende três vezes mais”, diz Giannetti. “Em vez de exportar grãos e minério com valor free on board, devemos vender produtos transformados com valor delivered duty paid. Isso mudaria tudo.”
Commodities em queda
Na atual recessão brasileira, a quantidade predomina sobre a qualidade no comércio externo. Em 2015, as exportações de minério de ferro, do complexo soja e de óleos brutos de petróleo bateram recorde em termos de quantidade, porém, o preço do ferro recuou 48% em relação a 2014, a soja caiu 24% e o petróleo despencou 49%. Apesar do volume recorde exportado, o valor das vendas diminuiu.
A China comprou US$ 35,6 bilhões do Brasil, seguida pelos Estados Unidos, com US$ 24,2 bilhões, a Argentina, com US$ 12,8 bilhões, e os Países Baixos, com US$ 10 bilhões. Com o dólar alto, as importações desabaram 24,3%, o que ajudou a gerar um superávit de R$ 19,6 bilhões. A moeda norte‑americana subiu quase 50% em 2015, o maior aumento em 13 anos, beneficiando as exportações. “Esse é o resultado não da virtude, mas da fraqueza”, nota o ex‑ministro Delfim Netto. “Se retomarmos o crescimento, a importação aumentará e deveremos ter déficit na balança.”
Segundo o Banco Central, o superávit previsto para 2016 é de US$ 47 bilhões, mais do que o dobro registrado em 2015, de US$ 20 bilhões. A queda nos preços do petróleo ajuda a balança comercial. Como o Brasil importa mais petróleo do que exporta, a desvalorização favorece as contas. Se a produção de óleo do pré-sal continuar a crescer, o ano fechará com números melhores.
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